sábado, 1 de fevereiro de 2020

Chuva de Egéria – Parte 1





EGÉRIA:
substantivo feminino
1. mulher que inspira, que dá conselhos.
2. entusiasmo criador; inspiração.



- “Devia ter me agarrado com mais força naquele caixão. Quem sabe o defunto, o Varlei, tivesse me salvo da enchente...


Francisco da Maria, o Chiquinho, acordou com o sol batendo forte, rasgando suas pálpebras. O sol raiava já acima da colina do Alto Verde, lado oeste da cidade.
Pegara no sono na quadra de futebol da Praça Principal. Penso que a chamavam de Principal, por esperar que um dia a cidade de Egéria fosse crescer mais que aquilo – mas até o momento, era principal e única.

Egéria contava com menos de 2 mil habitantes em meio a um clima árido durante 10 meses do ano, no mínimo. Agosto tinha chegado e trazia consigo a esperança da chuva. Esperança nas mãos postas do povo que rezava ao santo ou aos santos que fosse, para regar seu solo, alimentar o raro gado, a escassa lavoura, recuperar o Rio Largo, com o nível de água que a essa altura do ano, se alcançasse os joelhos, eram os de alguma criança.

Essa secura da terra, se assemelhava, naquele momento, à secura da boca de Chiquinho, ao qual faltava tudo, o que comer, onde dormir, mas não faltava a garrafa de pinga que trocava por ajudar o Seuzé, dono de uma das duas vendas da cidade. Afinal sem alguma bebida, como conseguir dormir? Com aquele calor incessante no ar, aquela solidão incapacitante...Bebia mesmo, diariamente.

Chiquinho ergueu-se, organizou as calças com uma das mãos. As costas da outra, passava pela baba ressecada entre a boca e o bigode e a barba por fazer. Cambaleou, mas contou com o alambrado da quadra que o jogou de volta ao prumo. Para compensar a quadra ‘inclinada’ sob sua vista, apoiou-se mais um pouco, olhando ao redor, reconhecendo a paragem em que estava.

Pela saída lateral da quadra, logo ali, passava um trecho do Rio Largo. Decidiu que naquelas águas, regaria a aridez da boca e regaria o rio de volta, liberando da bexiga a pinga da noite passada...Arrastava pé ante pé, nos primeiros passos, que logo se endireitaram, em melhor ritmo, não era novidade amanhecer assim, firmou-se.
Diante do Rio, jogou os judiados sapatos de lado, sentindo a areia sob os pés calejados. Roçando as solas, chegou à beira, não sem desafio, com as mãos em concha, com a água escassa e límpida, extinguiu a secura da boca, suspirando, entre goles, aliviado.

De pé novamente, abriu a braguilha e apontou o membro para o rio, lembrando da infância, em que a meninada entre brincadeiras volta e meia recorria àquele mesmo trecho para mijar.

No zigue-zague da brincadeira infantil, reproduzida nesse instante, levantou os olhos e percebeu algo estranho, à cerca de uns 10 metros...Fixou o olhar, focou melhor, e assustado interrompeu-se bruscamente. Pelo ângulo que tinha, pareciam-lhe dois tornozelos e um traseiro e braços estendidos, boiando. Sem pensar, correu rio adentro. E, mais próximo, teve certeza. Era um corpo!
Inclinou-se, e ainda que, com medo da familiaridade dos trajes, virou o corpo e viu o rosto do seu amigo, Varlei...

Élinson Martins

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Trabalhando na segunda parte, gente, mas a ideia já está toda aqui. Acompanhem!!


quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

A Flora e Fogo (Parte 3)




João se fora há quatro anos.
Flora sentia falta do pai, vigiando seu sono, lhe cobrindo, confortando e contando coisas lindas sobre sua mãe.
Hoje ela estava só. Cursava letras. Queria escrever sobre tudo o que sentia. Queria contar histórias que jamais viveu, queria expressar o tanto que sentia, aqueles gritos que lhe paravam na garganta, aquelas palavras de acalanto sopradas no ouvido enquanto sonhava. Aquele fogo que lhe consumia.

- Oi! Tudo bem? – Se aproximou aquela figura rara - Como você se chama?
- Flora!
- Flora... Que nome lindo! De onde vem?
Ela que era sempre fechada a tudo, sorriu sem querer: Vem de um lençol!
- Ah é? – sorria ele com todos os dentes - De um lençol, como assim?
- Ahh, longa história... - Nem ela sabia por que tinha mencionado aquilo.
- Bem, tenho tempo! Minha aula acabou mais cedo hoje. E a sua?
O calor lhe subia os cachos vermelhos, tinha mais três aulas...


- João! bem-vindo, amor!
João olhava ao redor e ouvia aquela voz que lhe acariciava.
Sonhou que perdia o controle do carro enquanto dormia ao volante.
Que dor forte sentia no peito na hora do choque contra o mar ao romper a proteção na ponte.
- João! – Ouviu novamente.
A voz ao fundo estava calma. Ele, ainda agitado.
Depois do estrondo, olhava ao redor, nas ferragens, à procura de alguém além dele. Procurava por Maria, procurava desesperadamente por Flora...
Não havia mais ninguém.
Apenas ele e o carro mergulhavam, sem amarras, pesados.
Tentava em vão abrir as portas.
Sentia muita vontade de espirrar, e o espirro não saía...teve de respirar fundo, mas a água lhe entrava pelas narinas, se afogava...não dava mais...
Dentro da sua mente, gritava: Maria, eu vou morrer! O que vai ser da Flora? eu não consigo mais ficar acordado...eu não consigo mais...
Assim ele passou por cerca de quatro anos do tempo terreno.


- Estou livre também! E seu nome, qual é?
- João Pedro! – Disse ele sem piscar nos olhos dela, sem diminuir o sorriso, por dentro dela.
Flora silenciou ao ouvir aquele nome.
Evitando que o silêncio tomasse espaço, ele continuou:
- Mas me chama de Pedro!
Ela ajeitou a pasta no ombro, como se precisasse desse movimento para que não caísse. Fosse ela, fosse a pasta...
- Será que posso te chamar de João? – Se lançou, ainda sem entender seus ímpetos.
- Se tu preferes... Pode sim! – Ele, vários raios de sol mais alto que ela, dava um jeito de lhe olhar como se estivesse a uma mesma altura, mais baixo até, sentia ela...

Deitado, João sentia seus olhos cansados arderem. Como se o calor de um vulcão os atingisse. Mas era seu olhar se refazendo. Como se renascesse.
O tempo todo agitado, à certa altura sentou-se na grama, ainda sem coragem de levantar as pálpebras:
- Não! Não posso dormir! E se ela... – gritava desesperado.
- Calma, João. – Serena na voz, Maria passava-lhe a mão pela testa suada - Calma, amor. Está tudo bem...Sou eu!
- Maria? É você?? – estupefato, João tentava vê-la, era luz demais!
- Sim, sou eu! É tua Maria, amor! Agora sim! Pode abrir teus olhos, me abraçar!


segunda-feira, 13 de janeiro de 2020

A_Flora e Fogo (Parte 2)



Deixa vir, tente manter minha voz na superfície do seu entender, sem sair desse sono profundo.
Me ouça apenas, sei que é estranho, você nunca me viu, não sei se lembra da minha voz, minha menina, eu tenho tanto pra te falar, a vontade que tenho de te ver sorrindo quando o vento bate nos seus cabelos, é tamanha...não, não me abraça! Ainda é cedo. Embora minha saudade seja para sempre.

João observa Flora dormindo. Tão linda! Lembra em tudo sua mãe, em cada suspiro, quando se vira na cama e se acomoda, puxando com força o travesseiro para si, 'um anjo se confortando entre as nuvens', ele pensa.
João não se permite dormir, velando o sono da filha.

Como perdeu Maria, jamais de novo.
Naquele dia, desistiu de dormir, para sempre.

E vai até ela de meia em meia hora, entre olheiras e os pés arrastando, lhe testar a temperatura, com as costas da mão no rosto pequeno de menina.
É um alívio sentir que não há febre alguma. Devagar, lhe escorrem as lágrimas, como se vertessem entre as rugas, parece suor. É alegria.

- Eu te amo, pai - ainda dormindo, ela diz, quando sente o pai lhe cobrindo com um lençol florido que Maria adorava. Seu nome nasceu ali, com Maria admirando o lençol em outra noite quente, de 14 verões atrás.

- O pai te ama mais! Dorme amor...
João queria tomar qualquer sonho ruim pra si.

Um dia enfim o pai dormiu, e não adiantou chamar, ele não ouvia.

- Maria! Não sei nem por onde começar.
- João! Calma, descansa um pouco, já não faz calor...

 Ela já na superfície das águas, mas querendo ir fundo, entender.
- Espera, volta! Quem é você?

- Volto, amor! Estarei sempre aqui...

Élinson Martins 27/10/2016 (vem aí a parte 3! ;)

Link para a parte 1: