domingo, 10 de abril de 2016

ACID SERIES: Carlos Severbuk: O velho, o cego e o novo blues – Parte 3



Tudo o que eu não precisava era de incentivo para viver, não... aliás, tudo o que eu não queria era incentivo para viver. Mas puta que pariu, ela era uma mulher linda dizendo que não queria ficar sozinha ao anoitecer. Tratavam-se de duas questões cruciais para mim. Uma era: como deixar uma mulher solitária em uma cama de motel à beira da estrada? Outra, era anoitecer e ignorar que tudo o que me fazia sentir um pingo de vida ainda nessas células desistentes, acontecia quando o sol se entregava e a lua se erguia no céu.
Logo ao lado da basculante do banheiro ouvia os grilos lá fora, anunciando a chegada da noite.
Lavei minha boca mais uma vez, tentando livrar-me do gosto amargo de mim.
Sequei a água que escorria pela minha barba com uma toalha rosada, vagabunda e fedorenta. Revirava os olhos sem querer, só sentia uma fraqueza e uma tontura que me era tão familiar durante minhas ressacas. Pousei a testa sobre a porta por instantes, minha barriga se inflou, meu peito também e pelas narinas sentia algum ar invadir meu corpo. Devem chamar isso de respirar. Tentei de novo. Já não aguentava mais isso. E sem muita consciência, mas resoluto, girei a maçaneta...
Ultrapassei a porta, tentado manter o ar entrando e saindo do meu corpo, sem me desconsertar e sem perder os ritmos das lentas e mancas passadas. À esquerda ao fundo, uma porta marrom em volta das paredes mofadas. Janela nenhuma nos talvez quatro por seis do quarto. Nele não havia mais que uma cama de casal, um tapete verde imundo em forma oval e um quadro torto na parede, retratando uma ilha com um sol banhando o mar. Aquele era, provavelmente, o único sol ao qual me disporia a ver. E a última cama na qual deitaria meu corpo até que alcançasse a Glock 9mm no porta luvas do carro. Deitada, ela me olhava e sorria. Baixei os olhos logo que cruzei com os dela. Mas não em tempo:
            - Está melhor, gato?
            - Gato?
            - Hahahaha, está melhor? – Gargalhava como se não houvesse miséria no mundo.
            - Ah claro, estou... – sem limites para meu fingimento.
Alcancei o telefone, alguém que deveria ser uma gorda, mau humorada, rosnou:
            - O que que é?
            - Que bebida você tem aí? - Tentei não me intimidar.
            - Que bebida você quer? – Ela me testava.
            - Jagermeister você tem? – Rebati, sugerindo o impossível.
            - Tenho, 200 pratas a garrafa.
            - Manda uma! – Improvisei ainda sem acreditar que de fato ela tivesse.
            - Em dez minutos. Quarto 12. Você tem como pagar velho?
            - Manda logo essa merda!
Desliguei com uma pancada.
Olhei para minhas meias sujas quase escapando dos pés. Nem nos lugares mais remotos da minha imaginação eu conseguiria me sentir menos do que o pior homem da terra. Se eu estivesse sozinho, seria apenas meu exercício diário de ser um verme e querer deixar as areias das ampulhetas caírem. Mas tinha alguém atrás de mim, com os olhos nas minhas largas costas. Suspirei e gemi durante o esforço de retirar as meias. E me virando, mas não a ponto de alcançar seus olhos, mandei:
            - Por que você ainda não foi embora, garota?
            - Você quer que eu vá embora?
            - Não sei nem porque você veio – tentava me manter insuportável.
            - Você que insistiu querido... – eu era querido então. Estava dando tudo errado.
            Fiz minha mais maldita expressão, agora buscando seus olhos, mas me desarmando com os doces olhos verdes dela:
            - Merda garota, você...você não deveria estar aqui...
            - Onde mais eu iria querer estar, gato? – Terminou a frase tirando o braço direito sob o lençol pousando a mão no meu ombro.
            Tentei me esquivar sem conseguir. Que filha da puta. Sou um velho derretido e fraco para esse tipo de coisa. Principalmente porque sentia verdade nela e não aquelas putices às quais estava acostumado. Conheço uma puta fácil de longe. Das mais veteranas desesperadas às mais novas oportunistas. E eu sou porra nenhuma em potencial para ocupar o tempo de qualquer uma delas.
- Vá embora garota!
- Está gostoso aqui querido. – Me sorriu espreguiçando. Comecei a questionar por dentro tudo o que achava que sabia. Era pouco. Mas era meu. Me orgulhava de tudo o que havia passado. E estou falando das merdas todas. Não estou falando de estudo em faculdade meu amigo, não estou falando de herança, de convívio com pessoas boas, de convívio familiar. Aliás, meu amigo, o caralho. Não tenho amigos e tenho orgulho de não me misturar com essa escrotidão que é a sociedade, o sistema, o coletivo, a humanidade. Eu não quero fazer parte. Eu não quero ser, eu não quero porra nenhuma, eu não sei porque estou aqui. Só sei que estou e insisto em escapar desde que nasci, mas devo ser um covarde do caralho. Isso, um covarde é o que eu sou. Do caralho.
- Você é quem sabe! – E fui tirando a mão dela do meu ombro, quando ia soltar sua mão, ela segurou a minha, levando diretamente à sua buceta, sob o lençol quase branco.
- É, eu sei sim! – Falou enquanto eu arregalava os olhos, surpreso.


- Serviço de quarto – Veio o grito acompanhando pancadas na porta.

2 comentários:

Samyr disse...

"Se eu estivesse sozinho, seria apenas meu exercício diário de ser um verme e querer deixar as areias das ampulhetas caírem."

Mas que bela descrição da minha vida!

Paulo! disse...

Wow, that's dirty...

Veja só, logo no começo me veio um cara e seu sentimento de desajuste... Me lembrei de O Idiota (Dostoiévski), o príncipe que não se reconhecia frente ao mundo que lhe cercava. Mais adiante, pude passear pela desconstrução de sua própria identidade, a repulsa por si próprio, muito similar a metamorfose descrita por Kafka em sua obra homônima - embora, por motivações distintas, é claro. E ao terminar de ler, ahh... Bukowski gritante. Demais!

Parabéns meu caro, não teve como não reconhecer que de fato, além do conto só melhorar, tuas fontes são as melhores.