sábado, 30 de abril de 2016

ACID SERIES: Carlos Severbuk: O velho, o cego e o novo blues – Parte 4



Abri os olhos e uma infiltração no teto, ao canto, me chamou a atenção. Úmido o teto, úmida eu enquanto descruzava as pernas. Um lençol por cima do meu corpo nu,  longe de me trazer conforto, ainda me protegia, seja lá do que for. Menos dele, que o dividia comigo. Bom dia ogro, pensei. De costas para mim, quase não me deixava ver a parede oposta. Peixe grande, largas espinhas. Precisava parar com isso! De deitar com qualquer cara que encontrasse no bar. Aos poucos me vinha a lembrança da noite anterior. O velho Vini tocando sua gaita de boca, aquele blues que mexia comigo como nenhuma outra música mexia. Meu refúgio. Ele cantava minha dor, meu vazio, meu nada. Aquilo que eu insistia em transformar em alguma coisa. Pelo visto sem sucesso...
Lembrei de como nos encontramos, o ogro e eu, sua entrada no bar, nitidamente bêbado já. Mas ele levava algo no olhar. Não sei se era apenas raiva, desassossego. Aqueles olhos me diziam alguma coisa, que ainda não sabia bem o que era. Que caralho de vida é essa que eu levo? Eu sei que uma garota de 19 anos num bar de beira de estrada, possui um poder que mulheres muito mais maduras e vividas que eu, jamais terão. E devo ser uma putinha muito esperta por isso: Passar a noite seduzindo homens frustrados para ganhar bebidas e cigarros a troco de atenção, talvez seja algo degradante. Pois bem, bem-vindo à minha vida! Mas eu não esperava mais que isso...vou lhe poupar de contar qualquer história triste. Que se foda. Me poupe do seu julgamento. Já pude concluir, há tempos, que cada um tem seu drama e que nossas atitudes refletem na vida que vivemos, bla bla bla. Já usei todas as drogas que tive ao meu alcance, já encontrei todos os tipos de filho da puta que existem para encontrar. E tomei algumas surras, eu sei. De tantos, da vida. Eu quero apenas um motivo para seguir. O fato de ainda abrir os olhos e encontrar as infiltrações nos tetos destes pulgueiros, já é suficiente, continuemos.
Agora, esse velho aqui tem algo. E estou cagando para o carro dele ou se ele tem algum lugar aonde cair morto ou não, não é essa questão. O fato é que ele parece ter uma raiva de tudo, tão grande quanto a minha. E se tivermos que desafiar o próprio diabo agora, ele parece ser um bom aliado.
Ele acordou. Não...dormiu de novo. Encontro um cigarro no criado mudo ao meu lado. Sento na cama e o acendo, sem pressa. Solto a fumaça e fico um pouco tonta. Sem novidade. Os lugares que tenho para ir me querem tanto quanto os quero. Nada. Prefiro a tontura. A tortura. Suspiro, sem pensar em nada, apago o cigarro e apago, em poucos minutos.
De lado na cama, abro os olhos e me deparo com ele me olhando. Um olhar doce, terno. Sorrio, inevitavelmente.
Em um pulo na cama, ele se vira e vomita. É o mínimo. Não o acompanho nessa, pois não tenho nada no estomago. Cerveja e mágoas, mas meu corpo se conformou com isso, faz algum tempo.

      - Você está bem? – pergunto.

      - Estou morto. Para onde devo ir?

O acho divertido, e lembro que foi isso que me atraiu, além daqueles olhos. Bom vê-los abertos. Ou quase.

      - Quem sabe para ali? – Aponto o banheiro com os olhos.

Ele vai...vagaroso, desistente, mas vai.
Eu fico...por uma eternidade, fico.
As bolhas do teto, parecem que vão ceder e cair sobre mim. Ele puxa a descarga, uma, duas, três vezes. Tenho vontade de levantar, bater na porta, ajudar. Segurar seu corpo imenso em frente à privada enquanto vomita. Mentir que vai passar. Mas não passará nunca, nunca vai passar. Fico. Quando ele sair do banheiro, me asseguro de que ele está bem e vou embora. Junto minhas roupas, lhe beijo o rosto, digo até um dia e vou embora. É isso que eu faço querido. Eu sei, nem transamos. Mas não lembraríamos de qualquer forma, amor. Isso, seu pau não levantaria, amor. Não, não quero um tostão seu, se quiser me pagar apenas o taxi até a estação eu aceito querido, claro, afinal de contas preciso ir, eu tenho minha avó para cuidar, ela está tão doente. Ela que me criou depois que meus pais morreram, amor. Um dia lhe devolvo, ela possui um seguro que vai me deixar tranquila por um bom tempo.
Encho o saco e grito:

      - Hei! Tá tudo bem aí?

      - Tá, tá tudo bem sim... – Mentiroso! Como se eu não reconhecesse o peso que tem a porra da vida, e toda aquela bebida.

      - Então volta – eu juro que vou embora se ele ficar mais um minuto lá dentro.
. . .

     - Vai anoitecer, e eu não quero ficar sozinha... – eu digo, me arrependo e não entendo de onde isso saiu.

Ele enfim sai da porra do banheiro. Tento manter minha cara decente, sorridente. É foda, não sei, mais o que sou ou sinto. Mas estou ali e ele não é um cara mau. Puta que pariu, quantas vezes disse isso para mim mesma e acabei costurando o rosto em algum pronto socorro qualquer?

Trocamos algumas palavras, ele me fez rir e pediu uma bebida para a recepção do hotel.
Me animei com a ideia. Voltei a me excitar. Ahh velho, se você soubesse...

      - Por que você ainda não foi embora, garota? – É, ele não sabia realmente.

Ele insistia, coitado, em vão, resistir, se livrar de mim.

    - Vá embora garota! – Me disse ele a uma certa altura...A frase mágica, querido, ninguém me manda embora! Todos pedem que eu fique. Assim me apaixono por você.

      - Está gostoso aqui querido. – Falei, e me espreguicei, ressaltando cada contorno meu no lençol. Ogro, quem manda aqui sou eu! Toquei de leve seu ombro...

      - Você é quem sabe! – Falou, tentando tirar minha mão. Ele acha que sabe o que está fazendo. Pensei...E sem pensar, peguei sua mão e a conduzi direto em mim, quente, molhada.


      - É, eu sei sim! – Entreguei, diante dos seus olhos.


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Parte 1

Parte 2

Parte 3





domingo, 10 de abril de 2016

ACID SERIES: Carlos Severbuk: O velho, o cego e o novo blues – Parte 3



Tudo o que eu não precisava era de incentivo para viver, não... aliás, tudo o que eu não queria era incentivo para viver. Mas puta que pariu, ela era uma mulher linda dizendo que não queria ficar sozinha ao anoitecer. Tratavam-se de duas questões cruciais para mim. Uma era: como deixar uma mulher solitária em uma cama de motel à beira da estrada? Outra, era anoitecer e ignorar que tudo o que me fazia sentir um pingo de vida ainda nessas células desistentes, acontecia quando o sol se entregava e a lua se erguia no céu.
Logo ao lado da basculante do banheiro ouvia os grilos lá fora, anunciando a chegada da noite.
Lavei minha boca mais uma vez, tentando livrar-me do gosto amargo de mim.
Sequei a água que escorria pela minha barba com uma toalha rosada, vagabunda e fedorenta. Revirava os olhos sem querer, só sentia uma fraqueza e uma tontura que me era tão familiar durante minhas ressacas. Pousei a testa sobre a porta por instantes, minha barriga se inflou, meu peito também e pelas narinas sentia algum ar invadir meu corpo. Devem chamar isso de respirar. Tentei de novo. Já não aguentava mais isso. E sem muita consciência, mas resoluto, girei a maçaneta...
Ultrapassei a porta, tentado manter o ar entrando e saindo do meu corpo, sem me desconsertar e sem perder os ritmos das lentas e mancas passadas. À esquerda ao fundo, uma porta marrom em volta das paredes mofadas. Janela nenhuma nos talvez quatro por seis do quarto. Nele não havia mais que uma cama de casal, um tapete verde imundo em forma oval e um quadro torto na parede, retratando uma ilha com um sol banhando o mar. Aquele era, provavelmente, o único sol ao qual me disporia a ver. E a última cama na qual deitaria meu corpo até que alcançasse a Glock 9mm no porta luvas do carro. Deitada, ela me olhava e sorria. Baixei os olhos logo que cruzei com os dela. Mas não em tempo:
            - Está melhor, gato?
            - Gato?
            - Hahahaha, está melhor? – Gargalhava como se não houvesse miséria no mundo.
            - Ah claro, estou... – sem limites para meu fingimento.
Alcancei o telefone, alguém que deveria ser uma gorda, mau humorada, rosnou:
            - O que que é?
            - Que bebida você tem aí? - Tentei não me intimidar.
            - Que bebida você quer? – Ela me testava.
            - Jagermeister você tem? – Rebati, sugerindo o impossível.
            - Tenho, 200 pratas a garrafa.
            - Manda uma! – Improvisei ainda sem acreditar que de fato ela tivesse.
            - Em dez minutos. Quarto 12. Você tem como pagar velho?
            - Manda logo essa merda!
Desliguei com uma pancada.
Olhei para minhas meias sujas quase escapando dos pés. Nem nos lugares mais remotos da minha imaginação eu conseguiria me sentir menos do que o pior homem da terra. Se eu estivesse sozinho, seria apenas meu exercício diário de ser um verme e querer deixar as areias das ampulhetas caírem. Mas tinha alguém atrás de mim, com os olhos nas minhas largas costas. Suspirei e gemi durante o esforço de retirar as meias. E me virando, mas não a ponto de alcançar seus olhos, mandei:
            - Por que você ainda não foi embora, garota?
            - Você quer que eu vá embora?
            - Não sei nem porque você veio – tentava me manter insuportável.
            - Você que insistiu querido... – eu era querido então. Estava dando tudo errado.
            Fiz minha mais maldita expressão, agora buscando seus olhos, mas me desarmando com os doces olhos verdes dela:
            - Merda garota, você...você não deveria estar aqui...
            - Onde mais eu iria querer estar, gato? – Terminou a frase tirando o braço direito sob o lençol pousando a mão no meu ombro.
            Tentei me esquivar sem conseguir. Que filha da puta. Sou um velho derretido e fraco para esse tipo de coisa. Principalmente porque sentia verdade nela e não aquelas putices às quais estava acostumado. Conheço uma puta fácil de longe. Das mais veteranas desesperadas às mais novas oportunistas. E eu sou porra nenhuma em potencial para ocupar o tempo de qualquer uma delas.
- Vá embora garota!
- Está gostoso aqui querido. – Me sorriu espreguiçando. Comecei a questionar por dentro tudo o que achava que sabia. Era pouco. Mas era meu. Me orgulhava de tudo o que havia passado. E estou falando das merdas todas. Não estou falando de estudo em faculdade meu amigo, não estou falando de herança, de convívio com pessoas boas, de convívio familiar. Aliás, meu amigo, o caralho. Não tenho amigos e tenho orgulho de não me misturar com essa escrotidão que é a sociedade, o sistema, o coletivo, a humanidade. Eu não quero fazer parte. Eu não quero ser, eu não quero porra nenhuma, eu não sei porque estou aqui. Só sei que estou e insisto em escapar desde que nasci, mas devo ser um covarde do caralho. Isso, um covarde é o que eu sou. Do caralho.
- Você é quem sabe! – E fui tirando a mão dela do meu ombro, quando ia soltar sua mão, ela segurou a minha, levando diretamente à sua buceta, sob o lençol quase branco.
- É, eu sei sim! – Falou enquanto eu arregalava os olhos, surpreso.


- Serviço de quarto – Veio o grito acompanhando pancadas na porta.