Há anos atrás, me casara com Silvia,
Ela era mais velha que eu,
Belíssimas pernas e um sorriso que só eu fazia
surgir ou só eu enxergava...
Ela era viúva, tinha herdado uma bela casa e um
carro,
Alguma dureza e vontade alguma de prosseguir,
Passamos dois anos juntos,
Até que ela desistiu de uma vez,
E agora o viúvo era eu...
Ela nunca tivera filhos,
Mas seu cachorro Tony, um mastim, substituíra
qualquer carência neste sentido.
Tony durou 18 anos e Silvia teve a brilhante idéia
de empalhá-lo depois da insuficiência pulmonar do cão. Na sala ele ficava, plantado,
sempre me olhando, duro, com aquela expressão vazia...eu tinha pavor, mas
Silvia assim queria e conversava com ele, todos os dias e por vezes não
podíamos sair, para não deixar Tony sozinho.
- Ele nunca vai me deixar Carlos, ele é um anjo que
me protege! Jamais enterraria ele!
Quando ela se foi, eu fiquei, e Tony também. Não
tive coragem de tirá-lo de lá. Sabe deus que maldição recairia sobre mim caso
colocasse o Tony no lixo.
Por semanas naquela casa, era o cachorro e eu.
Litros e mais litros de vinho, pra mim.
Ele já não consumia nada, talvez apenas a mim, com
aqueles olhos amarelos.
Na noite de um sábado qualquer, não sei bem o porquê,
Deixei pra trás uma sala cheia de amargura e
solidão,
Aquelas negras nuvens sobre o tapete de centro,
O vento insistente, que levantava cortinas e fazia
voar guardanapos usados,
As cinzas de dentro do cinzeiro que voavam sobre
mim...
Meus olhos abriram embora eu não tomasse
consciência do que havia em frente a eles,
Cambaleei em direção à garagem e de lá rasguei a
noite com o velho Volvo preto da Silvia.
O Volvo me levava pra algum lugar que eu não sabia
qual era,
No retrovisor minha boca roxa do vinho,
Procurei por cigarros no porta luvas enquanto o
Volvo rodava a 110 quilômetros por hora na avenida, não encontrava...
Parei, aliás, o Volvo parou, em um bar na beira da
estrada, um lugar de filme americano, coisa do tipo. Lá dentro, um velho negro,
cego tocava uma música velha com sua velha gaita de boca. Meia dúzia de gente
atenta, meia dúzia embriagada. Eram três e meia da manhã de um sábado qualquer.
Pedi um maço de cigarros e uma long neck a uma
gorda atendente.
Sentei vendo o cego no palco, ao fundo.
Quando estava no fim da cerveja me apareceu ela, do
nada!
Olhos verdes, cabelos castanhos, uns 19 anos no
máximo e juízo algum.
Sentou ao meu lado e pediu um cigarro.
Quando eu ia fazer uma ‘cara de não’, ela fez uma
cara de ‘você jamais me diria não’.
Eram 30 anos de diferença, mas eu jamais
acrescentaria um milímetro de maturidade àquela mente.
Acendi seu cigarro.
Ela tragou fundo,
E me jogou fumaça nos olhos,
E secou minha long neck,
E dançou com sua barriga de fora em frente ao meu
nariz,
Na minha vida, até então, eu não tinha planos nem
desejos. Não tinha emprego, sequer dívidas. Não havia ideologia, nem mesmo medo
eu tinha...mas neste momento eu tinha o piercing dela enfiado em seu umbigo e
ela roçando a ponta do piercing no meu nariz.
E ao fundo, o velho blues, de um velho negro, com
sua velha gaita nos lábios.
Ele tocava e cantava roucamente:
“... Minha pequena dama,
Quero beber do verde blues
Que brota de você,
Vou beber tua juventude,
Enquanto o sol reclama do meu renascer...”