sábado, 5 de março de 2016

ACID SERIES: Carlos Severbuk: O velho, o cego e o novo blues – Parte 2



Abri um olho, depois o outro, lenta e pesadamente. A luz chegava aos poucos, cortando, rompendo o gelo da minha morte, insistindo em me deixar vivo, me ressuscitar. Havia bebido tanto, que se fosse para passar dessa para melhor, teria tomado esse trem, sem sequer perceber. Deixei mais algumas horas passarem, sem me mexer, sem me envolver.

Abri um olho, depois o outro. Vi um e depois dois olhos verdes, a minha frente. Se eu tivesse algum reflexo me assustaria. Juro! Por dentro, me assustei. E fazia tanto tempo que não me assustava, nem por fora, nem por dentro. Os olhos em mim, o sorriso também. Como era linda, eu tentava articular qualquer pergunta, ou entender o que acontecia ou o que aconteceu, eu não sabia meu nome, nem o corpo que eu habitava. Ela não falava nada, apenas mantinha o sorriso. Virei para o lado e vomitei, e vomitei minha alma e nesse momento lembrei: eu era Carlos Severbuk, o filho da puta cujo despertador é o diafragma que traz seu passado de volta. Mas não preciso entrar em detalhes. Todos os dias era isso, só não contava hoje, com mais olhos e mais uma boca, com mais um corpo inteiro, em alguma espelunca de beira de estrada, ao meu lado. E vomitei de novo.

- Você está bem?

- Estou morto. Para onde devo ir?

- Quem sabe para ali? - Se divertiu apontando o banheiro.

Obedeci. Enxaguei a boca e lavei os olhos e o rosto. E haveria de passar aquela porta...E, aos poucos, tudo foi voltando: o cachorro empalhado, os dias prostrado, a poeira amarga lambendo meus lábios, o tanto de vinho, o tanto de mim, amargo...minha fuga, minha angustia, o Volvo acelerado, o bar, o cego e o blues, aquela garota atrevida, a vida insistindo...era ela! Do outro lado da porta, sobre um colchão roto, a garota. Puta que pariu!
Era ela!

Não lembro como chegamos ali, não entendo ainda como sobrevivi.
Lavava o rosto sem erguer os olhos para não ver o espelho. Minha realidade, por dentro, já era intragável, insuportável. Não queria dar rosto aquele pedaço inútil e deslocado de tudo que eu me sentia.

Cuspi todo meu chorume, um tanto de bílis. Foda-se! Se assim fosse, eu queria era enojar o próprio diabo! Eu preferia assim, ser o pior, deitar e rolar, sem martírio algum, na minha miséria...

- Hei! Tá tudo bem aí?

- Tá, tá tudo bem sim... - menti. Se fosse para falar a verdade, eu não saberia nem por onde começar. Queria um ralo. Queria me desligar.

- Então volta!

Respirei fundo, e tudo era ferrugem e cacos, era tudo bolor e sujeira. O banheiro, eu...

- Vai anoitecer, e eu não quero ficar sozinha...


Com as mãos apoiadas na pia, eu pensava, minha criança: Nunca vou poder te acompanhar...Todos os homens do mundo te querem nesse momento. Eu? Sou apenas um barco naufragado, que já não anseia navegar...



05/03/2016
Obrigado Paulo Vida, por pedir 'notícias' do Velho, o cego e o blues!


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Parte 1